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Um ir-remediável: 15 anos sem Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu morreu em 25 de fevereiro de 1996. Tinha 47 anos, e começava a obter um crescente reconhecimento do valor literário de sua obra. Seguindo, algo involuntariamente, o mote "Viva intensamente, morra jovem", Caio morreu no começo da idade madura, tendo vivido e escrito intensamente.

Abreu é um dos escritores representativos da narrativa brasileira contemporânea. Seu trabalho é marcado por temas caros aos anos 60-90 do séc. XX e, também, por certo experimentalismo formal (mistura de gêneros, narração não-convencional, intensa intertextualidade). Sua obra é urbana, captando fragmentos da vida nas grandes metrópoles, com seus habitantes solitários, sonhadores, claustrofóbicos, angustiados, irônicos, persistentes. Ele articula temas existenciais com questões sociais, elaborando-os por meio de uma linguagem à qual não faltam lirismo nem angústia.

Por meio de suas histórias, Caio explorou questões vinculadas às utopias de sua geração, que contestou comportamentos conservadores e regimes políticos autoritários. Uma das grandes contribuições de sua literatura foi politizar, por meio de suas personagens, categorias sociais que não eram reconhecidas como políticas: jovens, hippies, loucos, homossexuais, mulheres etc. Sua obra é combativa no tocante à crítica ao preconceito e à estigmatização social. Leia-se, por exemplo, os contos "Aqueles dois"; "Os sapatinhos vermelhos"; "O afogado".

A atração pelo que está à margem – temas, comportamentos, ideias, modos de fazer literatura – é um traço forte da literatura de Abreu. É, muitas vezes, assumindo um ponto de vista marginal que seus narradores e personagens criticam valores dominantes na sociedade e na cultura brasileiras. Morangos mofados (1982), seu mais famoso livro, consolida o seu estilo. Caio plasma o "olhar de míope" de Clarice Lispector para os pequenos detalhes que desestabilizam a teia do cotidiano ao gosto pelo insólito de Julio Cortazar e a certa acidez desencantada, melancólica, no registro de questões sociais, políticas, econômicas e comportamentais que dilaceram o indivíduo.

Suas personagens degladiam-se com a solidão, o desencontro amoroso, a (auto)crítica das utopias da geração-68 e a dura realidade de crise econômica que só muito recentemente arrefeceu no Brasil. "Tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?" pergunta, a certa altura, a protagonista feminina de "Os sobreviventes". Entretanto, apesar dos revezes, as personagens de Abreu insistem, correm os riscos de insistir naquilo que buscam. Daí amalgamarem uma lucidez insuportável, autocrítica, com o cultivo de uma difícil esperança.

Abreu viveu a homossexualidade e seus conflitos, abordando-a em alguns contos com franqueza e qualidade literária ímpares. Os protagonistas de "Aqueles dois" são homens que se defrontam com um afeto e desejo mútuos que sequer sabem nomear. O narrador de "Terça-feira gorda" rememora o drama de ter tido o amante linchado por homofóbicos anônimos – realidade, infelizmente, ainda atual. "Pela noite" registra um passeio de dois homossexuais pela noite gay de São Paulo, tematizando, mais propriamente, o medo de amar do principal protagonista, que se defende da entrega amorosa por meio do apego a uma estereotipada identidade gay. Foi dos primeiros textos literários a registrar, nos anos 80, a existência da Aids, inicialmente tratada como "peste gay" por certa imprensa irresponsável. "Linda, uma história horrível" narra o doloroso encontro de um homem maduro, com uma doença incurável (por sugestão, a Aids), com sua velha mãe na envelhecida casa materna, também habitada por Linda, uma velhíssima cachorra. O conto faz um registro pungente das verdades que se enunciam por meio do não-dito, selando o amor e a solidariedade dos que se amam para-além de suas diferenças e conflitos. É sempre por meio do não-dito que as personagens de Abreu – homo e heterossexuais – dizem o seu amor. Quando falam, criam diálogos desencontrados.

Caio não gostava de ser rotulado como escritor de literatura gay. Sabia que rótulos são redutores. Ele queria, e merece, ser lido por toda e qualquer pessoa como um bom escritor. É o que está acontecendo. Sua obra vem despertando grande interesse entre as novas gerações. Isso se deve, entre outras razões, ao fato de que sua literatura tem, também, um quê de adolescente. Seus narradores e personagens são críticos, inseguros, quase niilistas. Sabem mais propriamente o que recusam do que aquilo que querem. Resistem a acomodar-se à mediocridade, insistem em seus projetos.

Luciano Alabarse disse que uma música de Sueli Costa definia Caio Fernando Abreu: "Dentro de mim mora um anjo/ Que tem a boca pintada/ Que tem as unhas pintadas // Que me sufoca de amor/ Dentro de mim mora um anjo/ Montado sobre um cavalo/ Que ele sangra de espora/ Ele é meu lado de dentro/ Eu sou seu lado de fora". Morreu de pneumonia decorrente de Aids. Rebatizou, antes, seu primeiro livro de Inventário do ir-remediável.

* Arnaldo Franco Junior é professor do Curso de Letras da Unesp em São José do Rio Preto (SP) e Doutor em Literatura Brasileira.

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